Escrito por: Tatiana Melim
“Ele me levou para uma floresta, um lugar isolado. E gritou: coloca suas mãos na árvore. Eu chorei, gritei, implorei para ele não me machucar. Então ele disse para eu não olhar e começou a cortar minhas mãos. Meu marido amputou minhas mãos com um machado”.
O relato dessa história cruel, triste e desumana é da jovem russa Margarita Gracheva, 26 anos, vítima de violência doméstica praticada pelo seu marido à época, dezembro de 2017, Dmitry Grachev. O caso voltou aos noticiários na última semana porque o agressor, que se entregou à polícia após o crime, foi condenado a 14 anos de prisão no último dia 15 de novembro.
A história de Margarita chocou milhares de pessoas em todo mundo e mostra que o problema da violência contra as mulheres é mundial, não tem fronteiras e precisa ser denunciado e combatido todos os dias em todos os cantos do mundo.
Exatamente por isso a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu em 1999 o dia 25 de novembro como Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher. O objetivo é alertar os povos de todo o mundo sobre a necessidade de eliminar, de uma vez por todas, qualquer tipo de violência contra as mulheres, vítimas recorrentes de namorados, maridos, ex ou desconhecidos, que agridem com palavras e fisicamente, e cometem até mesmo crimes de feminicídio, como é definido na lei o assassinato de uma mulher pelo simples fato de ela ser mulher.
Segundo dados oficiais compilados pelo observatório de igualdade de gênero da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), pelo menos 2.795 mulheres foram assassinadas em 2017 por razões de gênero em 23 países da América Latina e do Caribe.
Em termos absolutos, a lista de feminicídios é liderada pelo Brasil, com um total de 1.133 vítimas confirmadas em 2017, isso sem considerar os casos de subnotificação que não constam nos levantamentos oficiais. Atualmente, a taxa de feminicídio no Brasil é registrada como a 5ª mais alta do mundo.
Da violência verbal ao feminicídio
A secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, Juneia Martins, atenta para o fato de que casos graves de violência e mortes por feminicídio continuam ocorrendo porque ainda são tolerados pelo Estado e por parcela da sociedade que, sobretudo por omissão, não age para eliminar as agressões contra as mulheres que, na maioria das vezes, começam com a violência verbal dentro de casa.
“A violência contra a mulher começa muito antes de acabar nas mortes que poderiam ser evitadas. Tudo começa no aumento do tom de voz, passando para palavras pesadas, que depois se transformam em ameaças, pressão psicológica, abusos, agressões e até mortes”, explica Juneia.
O autor da violência, geralmente o companheiro ou familiar da vítima, se sente dono da mulher. Ela é vista como um objeto, uma propriedade que não pode desagradá-lo sob a pena de pagar com sua integridade física ou até com a sua própria vida
– Juneia Martins
O caso da jovem russa que teve a mão decepada ilustra bem o ciclo de violência narrado pela secretária de Mulher da CUT. Dias antes do ataque, o ex-marido de Margarita Gracheva a ameaçou com uma faca. “Ele repetia: admita, você está me enganando ou não?”, contou a jovem à BBC.
Quando foi à polícia denunciar a agressão, ela tinha a certeza de que eles iriam na sua casa no dia seguinte. “Mas não foi assim que aconteceu. O policial me disse: ‘Vocês vão fazer as pazes, isso não é importante’. O caso foi encerrado. Três dias depois, ele me levou para a floresta e cortou minhas mãos”.
Para Juneia Martins, o principal motivo que levou ao crime contra a jovem russa é o mesmo que ocorre cotidianamente com milhares de mulheres: a banalização do machismo e da violência contra a mulher.
“Essas barbaridades ocorrem com as mulheres porque a violência e o crime de feminicídio são tratados pela população, pela mídia e pela Justiça como casos banais, de ‘ciúmes’ e ‘inconformismo com o fim do relacionamento’”, critica a dirigente.
Responsabilização da vítima
A tentativa de responsabilizar a vítima pela violência sofrida é muito comum. É o caso de Carla Guimarães, 44 anos, mãe de dois filhos. Quando o ex-marido pediu a separação em 2013, ela se surpreendeu, mas respeitou a decisão. A surpresa, no entanto, veio na sequência. Ele queria se separar, mas não queria sair de casa e menos ainda deixar de impor regras à vida de Carla e seus filhos.
Foi então que os desentendimentos se intensificaram e as agressões verbais e psicológicas passaram a ser constantes. “Eu decidi pedir para ele sair definitivamente de casa, pois comecei a ficar com medo de agressões físicas, pois as provocações e ofensas já tinham passado de qualquer limite”, conta.
Após três anos da separação, veio a violência física. Nem mesmo a distância impediu que o ex-marido, indignado por não poder impor as regras que queria, desferisse um soco na barriga de Carla ao tentar entrar na vila onde ela mora. “Foi horrível, pois além da agressão, fiquei preocupada com os meus filhos, que estavam assistindo tudo”.
Carla foi à delegacia, denunciou a agressão, mas o caso foi arquivado por falta de movimentação. “Não entraram em contato comigo e a ordem de restrição que tinha para que ele não se aproximasse acabou com o arquivamento do caso”, lamenta.
Hoje, além do fato de precisar lidar com as ameaças do marido, que usa seus filhos para fazer pressão, dizendo que irá denunciá-la ao conselho tutelar, Carla ainda precisa encarar as pessoas que a recriminam por achar que ela “está exagerando”.
“Meu ex-marido já chegou a pegar meus filhos sem autorização e ficar 20 dias com eles. Já fui agredida, sinto na pele e no meu emocional as pressões psicológicas dessa situação abusiva e ainda tenho de lidar com situações em que ele se passa pelo bonzinho e eu a louca”, desabafa.
Segundo a secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, essa é uma das primeiras violências contra a mulher a ser combatida. Isso porque, diz Juneia, é assim que se estabelece a banalização de casos que podem acabar em tragédia, brutalidade e assassinatos.
“As expressões como, ‘ela mereceu’, ‘mas olha como estava vestida’ ou ‘ela é louca’, são claros sinais de que estão tentando naturalizar o machismo e a violência contra a mulher. E isso nós não queremos e não podemos mais admitir. A qualquer sinal de agressão precisamos nos posicionar e colocar limites”.
Solidariedade entre as mulheres
E para impor limites e enfrentar o machismo, defende Juneia, as mulheres precisam ser solidárias umas com as outras e fortalecer a rede de proteção, assim como fez Carla há cerca de quatro anos. Ao perceber que sua vizinha apanhava do marido e era mais uma vítima da violência doméstica, levou-a para sua casa.
“Ela precisava sair daquela situação, não tinha como não ajudá-la e então resolvi acolhê-la em casa. É fundamental essa solidariedade. Sem isso fica mais difícil combater a violência que atinge muitas mulheres dentro de suas próprias casas”.
Levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo revelou que 66% dos assassinatos de mulheres acontecem dentro do ambiente familiar e também durante a semana, de segunda a sexta-feira (68%). Ao tirar a vizinha de casa, Carla, provavelmente, impediu que mais uma mulher fosse fazer parte dessas trágicas estatísticas.